Algumas notas sobre o filme

O Último Azul (2025)
04.09.2025
Por Fernando Machado *

ATENÇÃO: o artigo contém spoilers


Rodrigo Santoro e Denise Weinberg em cena de O Último Azul (Foto: Divulgação)

Foi uma grata surpresa assistir a uma obra que levantou de forma tão inteligente questões como o etarismo e as limitadas escolhas individuais, numa sociedade distópica e autoritária localizada na Amazônia brasileira.

O filme se passa num futuro não especificado e a personagem central é Tereza (Denise Weinberg), uma operária de 77 anos de uma empresa de processamento de carne de jacaré. Tereza é produtiva e pensa ter até os 80 anos até ser compulsoriamente transferida para uma “colônia para idosos” situada em lugar não revelado, mas bem distante da sua cidade.

Essas colônias, segundo a versão oficial, existem para que as gerações mais novas não tenham que se sobrecarregar cuidando das gerações mais velhas, o que as liberaria para uma vida mais produtiva. Os idosos também são considerados “incapazes”, sendo tutelados por familiares mais jovens.

Nossa estória começa quando Tereza é informada que a idade para a transferência compulsória passou de 80 para 75 anos. Recebe uma “homenagem” do governo por sua contribuição à sociedade, mas a seguir é demitida por seu chefe, que a aconselha a descansar e aproveitar a vida.

Ela rapidamente descobre que não pode mais comprar nada sem a autorização de sua filha e será transferida em poucos dias para a tal colônia. Isso a impedirá de realizar seu maior sonho: voar de avião.

Após a recusa da filha em autorizar a compra de um voo para “qualquer lugar”, com ida e volta no mesmo dia, nossa valente Tereza se rebela e foge de barco com o transportador clandestino de drogas Cadu (Rodrigo Santoro) rumo a uma cidade onde se pode voar de ultraleve motorizado.

A jornada pelos belíssimos rios e igarapés amazônicos é um dos pontos altos desse verdadeiro “boat movie” que contrasta com a nossa noção de “road movie” tradicional.

Foi interessante colocar o “caracol da baba azul” como um componente mágico (e que dá nome ao próprio filme). A “baba azul” do raríssimo caracol poderia, segundo o barqueiro Cadu, indicar o futuro da pessoa. E mais: não é a pessoa que encontra o caracol, mas sim o contrário.

O próprio Cadu experimenta o colírio mágico do caracol e entra em transe, revelando a Tereza sua frustração pelo amor perdido e sua situação paradoxal de prisioneiro, na prática, em um veículo que deveria lhe garantir a plena liberdade de ir e vir.


Cena do filme O Último Azul (Foto: Divulgação)

Tereza finalmente chega à cidade onde há o ultraleve a motor, apenas para descobrir com seu dono, Ludemir (Adanilo) que o aparelho está quebrado e necessita de grandes reparos. Ela até tenta ajudá-lo financeiramente, sem sucesso para garantir o efetivo conserto do aparelho e poder realizar seu sonho de voar...

Nesse mundo distópico os idosos podem ser denunciados e colocados pelos agentes do governo num veículo denominado “cata velho”, uma espécie de carrocinha aberta com grades, que desumaniza seus infelizes passageiros. Isso também ocorre com Tereza, que é obrigada a vivenciar essa humilhação pública.

Ela é obrigada a usar fraldas geriátricas e colocada numa fila com destino a um ônibus que a levará à famigerada colônia – as malas empilhadas na estação, enquanto os idosos embarcam nos veículos nos lembram, sinistramente, as do filme “A Lista de Schindler”. Outras pessoas já haviam comentado com Tereza que quem vai para a tal “colônia” jamais retorna...

Existirá mesmo essa colônia benevolente nos moldes da edulcorada propaganda governamental? Ou há na verdade algo mais sombrio por trás de tudo isso? Qual será o verdadeiro destino dos idosos nessa realidade distópica e autoritária que não lhes dá mais valor?

Pensei no filme americano “Fuga do Século 23”, de 1976 (que deu origem a uma série homônima), onde também foi retratada uma sociedade distópica, desta vez em um mundo pós apocalíptico, que determinava que as pessoas deveriam ir para o “Carrossel” (uma engenhosa máquina de extermínio) quando completassem 30 anos de idade!?!. Um casal improvável, Logan e Jéssica, resolve escapar das garras do governo e fugir daquela realidade terrível.

Assim como Logan e Jéssica, Tereza também escapa das garras do governo e parte para outra aventura pelos rios amazônicos em busca da tão sonhada liberdade, desta vez na companhia da vendedora de bíblias digitais Roberta (Miriam Socarrás).

Roberta lhe revela que o governo é corrupto e que os ricos que podem comprar sua liberdade através de um alvará especial (que ela mesma também possui), não precisam acabar na colônia.

Após ela mesmo decidir testar o poder mágico do “caracol da baba azul” e fazer uma aposta extremamente arriscada, Tereza decide continuar sua aventura com Roberta, rumo a um futuro incerto.

Uma pergunta: por que o governo baixou a idade improdutiva de 80 para 75 anos? Será que decidiu que precisava de mais lugares para os jovens no mercado de trabalho? Ou será que já havia alguma fratura no próprio modelo autoritário, sob a forma de perigosos questionamentos sobre os resultados práticos das ações governamentais?

Como economista, sempre estou atento a valores monetários expressos nas películas que assisto. O filme mostra Tereza pagando 500 reais a Cadu pela viagem de barco, 30 reais pelo açaí que compra num mercado, e as bíblias digitais sendo vendidas a 250 reais.

Como não há um valor comentado sobre os ganhos ou a poupança de Tereza, ou sobre outros valores como câmbio em relação a uma moeda estrangeira ou salários médios da população, não dá para saber muito sobre os preços relativos dessa economia distópica do Brasil do futuro.

O filme foi muito feliz ao enfocar a questão dos limites rígidos impostos à liberdade e às próprias possibilidades de escolhas individuais, em especial para pessoas numa idade considerada avançada e improdutiva pelo governo autoritário de plantão.

Também foi interessante colocar a trama numa Amazônia industrializada, o oposto do que estamos acostumados a ver. E, claro, o caracol mágico para mim foi como a cereja do bolo.

Com exceção da boa sacada das bíblias digitais, achei que faltou mostrar um pouco mais da tecnologia desse futuro distópico – no filme as pessoas não aparecem sequer usando celular. Os idosos poderiam, por exemplo, serem obrigados a receber um “chip rastreável”, realidade que já é tecnologicamente possível nesse momento.

A obra também falou de desafios bem atuais: há um inegável envelhecimento da população mundial, em geral, e brasileira, em particular, que não passa desapercebido e preocupa bastante os economistas.

Por exemplo, milhões de pessoas acima de 60 anos no Brasil de hoje estão aposentadas e ainda trabalham, o que pode gerar uma pressão potencial capaz de impedir o pleno acesso das gerações mais jovens ao mercado de trabalho.

Como no resto do mundo, também há um enorme custo previdenciário decorrente do envelhecimento da população. Do ponto de vista estritamente econômico, isso desloca os gastos dos governos para o pagamento de aposentadorias e pensões, ao invés de investimentos em obras e serviços públicos.

Para a própria sociedade, esse envelhecimento também demanda tempo extra com os cuidados dos idosos e traz custos adicionais para as famílias, a exemplo de maiores gastos com remédios, cuidadores, tratamentos especializados etc.

O filme escolheu mostrar deliberadamente uma solução radical, em que o governo resolveu unilateralmente remover fisicamente os idosos, tanto do mercado de trabalho, quanto da própria sociedade.

Para o governo do filme, as gerações mais novas, ao não precisarem mais gastar tempo e dinheiro cuidando dos mais velhos, seriam em tese liberadas desses encargos e, portanto, mais livres para produzir mais para o país. Também receberiam um valor do governo por cada pessoa idosa que estivesse na colônia, que poderiam usar em consumo ou poupança. Sem falar que, na prática, seriam os responsáveis legais pelo próprio patrimônio dos idosos que estariam na colônia.

Essa visão radical não leva em conta os anseios e expectativas dos idosos ainda produtivos, como Tereza, e também ignora as profundas questões emocionais envolvidas no relacionamento familiar. No caso específico de Tereza, sua filha é distante emocionalmente e está cuidando do neto.

Analisando outros casos históricos de remoção forçada de populações, ou de segmentos populacionais, por regimes autoritários hipócritas e pouco transparentes (como o que foi mostrado na película), não tenho dúvidas de que o destino dos pobres idosos nas colônias do filme de Gabriel Mascaro será, na melhor das hipóteses, infeliz e, na pior das hipóteses, bastante sinistro. Para pensar...

*Fernando T.H.F. Machado é Economista e admirador da Sétima Arte.

Agradeço também às observações atentas, dicas e correções da minha esposa Ana Lúcia, sem as quais elaborar o presente texto não teria sido possível.

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