GAZA EM 4 TEMPOS



 22.10.2025
Por João Moris, de Lisboa

Quatro filmes lançados este ano buscam dar visibilidade aos conflitos que assolam a Palestina

O cinema vem refletindo os trágicos acontecimentos dos últimos 2 anos em Gaza. O sofrimento, resiliência e determinação da população palestina são retratados em produções internacionais realizadas por cineastas árabe-palestinos, que trazem um olhar diversificado sobre Gaza e seu povo.    

Destaco abaixo quatro filmes sobre Gaza exibidos nos principais festivais de cinema do mundo e lançados em circuito comercial em vários países em 2025. Esses filmes situam-se em diferentes momentos – antes e depois de 7/10/2023 – quando o grupo palestino Hamas lançou um ataque sem precedentes a Israel, levando a uma retaliação genocida por parte do governo sionista israelense contra Gaza.

Além da urgência do tema, o aspecto mais interessante dessas produções é que elas focam no nível micro, isto é, mostram palestinos em seu cotidiano tentando sobreviver às agressões contínuas e o confinamento imposto por Israel em um território exíguo (365 km2 ou ¼ do tamanho da cidade de São Paulo) e populoso (2 milhões de habitantes), como é o caso da Faixa de Gaza. 

A Voz de Hind Rajab (Sawt Hind Rajab) 
Direção: Kaouther Ben Hania - Tunísia/França/EUA
Um filme que causa grande impacto por sua contundência e grau de realismo. “A Voz de Hind Rajab”, habilmente dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania, é um docudrama (mistura de documentário e ficção) e conta um episódio real ocorrido em janeiro de 2024 quando voluntários da Crescente Vermelha, o braço árabe da Cruz Vermelha, recebem um chamado de emergência anunciando que uma garotinha palestina de 6 anos está presa num carro no norte de Gaza, que acaba de ser metralhado pelo exército de Israel matando todos os seus ocupantes, com exceção da menina Hind Rajab. O grande mérito do filme é usar a voz verdadeira da garota conversando com os voluntários (atores), que buscam desesperadamente chegar até Hind para salvá-la. Um filme tenso, quase um thriller psicológico, que sem ser manipulador ou sensacionalista, joga o espectador no meio dos escombros de Gaza e na impunidade do genocídio perpetrado por Israel ao povo palestino. “A Voz de Hind Rajab” ganhou o prêmio do júri no Festival de Veneza e o prêmio do público no Festival de San Sebastián.


Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe (Put Your Soul on Your Hand and Walk)
Direção: Sepideh Farsi - França/Palestina/Irã 
Outro filme sobre a situação atual de Gaza, narrando um episódio que causou grande comoção mundo afora ao retratar a conversa por vídeo entre a diretora iraniana Sepideh Farsi, exilada na França, e a jovem fotógrafa palestina Fátima Hassouna, de 25 anos, em Gaza durante os bombardeios de Israel pós 7 de outubro. As conversas informais e carregadas de amorosidade entre as duas eram quase diárias e começaram em abril de 2024. A jovem não só relatava o seu dia a dia à diretora, mas também enviava fotos de Gaza quando conseguia sair do seu apartamento. Nos primeiros meses, a jovem mostrava otimismo e uma fé inabalável na reconstrução de Gaza e na independência da Palestina apesar das bombas caindo ao seu redor, mas à medida que os ataques foram se intensificando e a situação em Gaza ficando cada vez mais precária, sem comida, energia e água, a jovem passa a mostrar-se aflita e as conversas por vídeo entre as duas foram rareando. Em abril de 2025, após um ano de conversa com Fátima, a diretora informou à jovem que o documentário com sua história e fotos havia sido selecionado para o Festival de Cannes. Um dia depois, o prédio onde morava foi bombardeado por Israel matando Fátima e toda sua família. O título do filme é um trecho tirado de uma das conversas com Fátima, quando a diretora pergunta se ela não tinha medo de sair do apartamento onde morava, andar pelas ruas de Gaza e ser morta. A jovem responde: “Não, cada vez que eu saio às ruas, coloco minha alma na palma da mão e caminho.”  


Com Hasan em Gaza (With Hasan in Gaza)
Direção: Kamal Aljafari – Catar/Alemanha/França  
Este tocante documentário parte de três mini vídeocassetes encontrados por acaso pelo diretor e artista plástico palestino, Kamal Alfajari, que está à procura de Hasan, um antigo companheiro de cela que conheceu durante sua prisão em 1988. As fitas mostram uma viagem de ambos de norte a sul de Gaza feita em 2001, tendo Hasan como guia. A procura por Hasan dá lugar a uma reflexão cinematográfica sobre a memória, as perdas e a passagem do tempo. Diante do genocídio em curso em Gaza, o filme adquire uma urgência particular, visto que as fitas captam uma Gaza que não existe mais e vidas que talvez tenham desaparecido. Assim, vemos crianças brincando nas ruas empoeiradas  e esburacadas de Gaza, se divertindo à beira da praia com os pais, o burburinho dos mercados de rua, a vida precária e dificil, mas pulsante. Onde estará Hasan? Que terá acontecido com aquelas crianças? E com aquelas pessoas? Estão vivas ou morreram na guerra? Assistimos às imagens caseiras do documentário com essas perguntas na cabeça e com um aperto no coração diante da fragilidade da vida.  

Este filme está sendo exibido na 49ª Mostra de SP.
   

Era uma Vez em Gaza (Once Upon a Time in Gaza)
Direção: Arab Nasser e Tarzan Nasser – Palestina/França/ Portugal/Alemanha/Inglaterra/Jordânia/Catar/Emirados Árabes
A única obra de ficção desta quadrilogia de filmes sobre Gaza, esta é uma interessante mescla de drama, comédia, faroeste e realidade. Uma fábula à la Tarantino, o filme acompanha a história de Yahya, um jovem palestino solitário que encontra em Osama um amigo excêntrico e leal. Os dois trabalham juntos na lanchonete de falafel de Osama, que, por sua vez, passa mais tempo fora do pequeno estabelecimento, traficando remédios controlados, que são cuidadosamente colocados no meio dos sanduíches de falafel preparados por Yahya. Não por acaso o filme situa-se no ano de 2007, quando o Hamas venceu as eleições legislativas em Gaza, desencadeando o bloqueio militar, político e económico por parte de Israel. É o único filme da quadrilogia que contém uma crítica um pouco mais aberta ao Hamas e ao caos de Gaza, além de satirizar Israel em uma sequência de “filme dentro do filme” muito engraçada. Este é o terceiro longa dirigido pelos irmãos Nasser, cineastas gêmeos idênticos nascidos na Palestina. O filme ganhou o prêmio de melhor diretor na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes deste ano. 
  
Este filme está sendo exibido na 49ª Mostra de SP.


Em Rumo a uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown)
Direção: Mahdi Fleifel – Palestina/França/Arábia Saudita/ Alemanha/ Inglaterra /Grécia /Dinamarca/Catar/Países Baixos/  
Este filme de ficção, lançado internacionalmente em 2024, não faz parte da quadrilogia sobre Gaza, mas o incluí aqui por retratar palestinos refugiados na Europa, que é uma face cruel da falta de reconhecimento do Estado Palestino. Os jovens primos palestinos Chatila e Reda são dois pequenos criminosos vivendo de furtos e expedientes ilícitos em Atenas, Grécia. Eles tentam juntar dinheiro para comprar passaportes que lhes darão direito a entrar na Alemanha, país que julgam ser o trampolim para uma vida melhor e mais digna. Mas, as tentativas fracassam e eles se vêem cada vez mais envolvidos com o crime organizado em uma espiral vertiginosa que os arrasta para baixo. Um filme tenso e pungente, que mostra como a vulnerabilidade moral e ética dos refugiados pode levá-los a um estado de indigência e estagnação. Segundo o diretor Mahdi Fleifel, de origem palestina naturalizado dinamarquês, o filme fala da “situação dos que se ausentam da sua pátria de nascimento na condição de deserdados e espoliados dos direitos históricos que lhes pertencem”. O filme estreou em maio de 2025 nos cinemas em São Paulo e está disponível na plataforma Prime Video.


BREVE HISTÓRICO SOBRE GAZA

Desde 1948, a região conhecida como Territórios Palestinos reinvindica legitimamente suas terras e autonomia diante do cerco implacável de Israel, que há anos controla de maneira bélica os dois territórios palestinos, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Palco de sucessivas guerras e conflitos nos últimos quase 80 anos, a Palestina tornou-se um símbolo de resistência e luta contra a opressão de nações imperialistas.

Durante esses 77 anos, houve dois grandes movimentos marcantes de insurgência do povo palestino contra o Estado de Israel, conhecidos como intifada. A primeira intifada durou de 1987 a 1993 e a segunda intifada de 2000 a 2005. Esses movimentos levaram à intensificação dos conflitos e à escalada de violência entre Israel e a Palestina, culminando com o sangrento ataque a Israel em 7 de outubro de 2023 pelo grupo Hamas, que domina o cenário políico da Faixa de Gaza.  .

Com a retaliação de Israel contra o ataque, a Faixa de Gaza, que tem apenas 42 km de comprimento por 17 km de largura, vem sendo assolada por uma guerra desumana e desproporcional  contra seus 2 milhões de habitantes, com matança descontrolada de civis e a destruição total da já frágil infraestrutura do território, deixando Gaza praticamente inabitável e os palestinos acuados sob a mira de misseis e bombas, resultando em deslocamentos, fome, doenças e um sofrimento sem fim.

Apesar do silêncio da maioria dos líderes e poucos governos no mundo estejam se posicionado veementemente contra esse massacre, cidadãos comuns, artistas, acadêmicos, celebridades e organizações não-governamentais ao redor do planeta vêm se mobilizando pelo fim do genocídio em Gaza.

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