DIÁRIOS DA BERLINALE 2

10.02.2019 
Por João Moris, de Berlim

Berlim ferve com o seu festival de cinema. São filas e mais filas de cinéfilos pagantes, jornalistas e outros profissionais credenciados tentando entrar nas salas, que vão de 300 a 1.700 lugares. Nas sessões para credenciados, muita gente acaba ficando de fora, como se houvesse um “overbooking” de lugares. As filas não são lá muito organizadas, mas as sessões começam rigorosamente no horário. E basta as luzes se apagarem, silêncio total na plateia, mesmo nas salas maiores! 

Nos primeiros quatro dias da Berlinale, o festival exibiu alguns dos 17 filmes que concorrem ao prêmio Urso de Ouro na mostra Competição, entre eles o do “enfant terrible” do cinema francês, François Ozon, que trouxe Grâce à Dieu (“Graças a Deus” em tradução livre). Com este filme, Ozon mira diretamente na Igreja Católica e fala de casos verídicos de pedofilia na Diocese de Lyon há mais de 30 anos. Traça a história de três homens, que tiveram suas vidas afetadas pelo abuso sexual perpetrado por um padre em várias crianças que faziam parte de um grupo de escoteiros. O grande mérito deste filme é não dar respostas fáceis ou maniqueístas a um tema espinhoso: os personagens não são movidos pelo ódio, mas pelo senso de justiça, o padre admite que abusou sexualmente, mas não reconhece a culpa, a Igreja reconhece a gravidade dos atos, mas reluta em punir e afastar os culpados. Um filme atual e necessário.

Cena do filme Grâce à Dieu

Outro “enfant terrible”, desta vez do cinema alemão, o diretor de origem turca Fatih Akin, traz um filme tão polêmico quanto violento sobre um “serial killer” na Hamburgo da década de 70: The Golden Glove. Baseado no livro Der goldene Handschuh (2016), do escritor alemão Heinz Strunk, o filme conta a história de Fritz Honka, que assassinava e desmembrava mulheres e guardava partes do corpo em seu pequeno apartamento. Fatih Akin não poupa a plateia de detalhes gráficos e sórdidos de como Honka matava suas vítimas. Ainda assim, segundo o próprio diretor afirmou na coletiva de imprensa, ele buscou “resgatar um pouco da dignidade da vida do assassino”. Um filme provocador, que não deixa ninguém indiferente, certamente irá causar furor principalmente entre as mulheres.

Cena do filme The Golden Glove

Já o filme indiano Gully Boy, da diretora Zoya Akhtar, que também teve estreia mundial na Berlinale, é bem mais light, ainda que mostre os contrastes da cidade de Mumbai. Trata-se de uma ficção sobre o movimento hip-hop entre jovens indianos (muçulmanos!). Sem apelar para os maneirismos típicos dos filmes de Bollywood, a diretora faz um filme cativante e universal que surpreende pelos bons diálogos, dramaturgia consistente e coreografias sem pirotecnias tecnológicas. Também é interessante observar os avanços da sociedade indiana em relação à mudança de comportamento dos jovens. Pena que o filme dificilmente será distribuído nos cinemas brasileiros.

Cena do filme Gully Boy

A Berlinale deste ano também traz um filme de espionagem, a produção germânico-israelense The Operative, do diretor Yuval Adler. A atriz alemã Diane Kruger (de Em Pedaços e Bastardos Inglórios) dá o seu show habitual de interpretação como a agente da Mossad, que é designada para uma missão em Teerã, e acaba se apaixonando por um iraniano. Como a maioria dos filmes sobre espiões, este também atravessa vários países, é falado em várias línguas e tem muitas reviravoltas. Mas, o diferencial deste filme é o enfoque nas emoções e na transformação da protagonista, e não tanto na ação.

A atriz Diane Kruger em The Operative

Um dos filmes brasileiros da Berlinale, A Rosa Azul de Novalis, dos diretores Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, promete causar polêmica quando for lançado no Brasil. À maneira como fez em seus filmes anteriores, Nova Dubai (2014) e Lembro Mais dos Corvos (2018, em breve em circuito comercial), Gustavo Vinagre tem uma maneira toda peculiar de filmar os seus personagens, que se dirigem diretamente à câmera, alternando entre o documentário e a ficção. Em A Rosa Azul de Novalis, o protagonista é o ator Marcelo Diório, que despudoradamente fala de seu mundo interior, de sua vida pessoal, dores familiares, preferências sexuais etc pela apropriação do seu corpo e mente. Para Marcelo, o cérebro e o corpo são uma coisa só, daí o ânus ser uma extensão da cabeça e o orifício anal ter um papel preponderante no filme. Ora engraçado, ora analítico, ora tocante, ora autoindulgente, mas nunca medíocre, um filme para se ver com todos os olhos bem abertos!

Cartaz do filme A Rosa Azul de Novalis

Tudo indica que as exibições dos 12 filmes brasileiros na Berlinale deste ano serão marcadas por protestos políticos contra o crescimento da ultradireita ora em curso no Brasil, visto que todos os diretores/atores brasileiros que se apresentaram até agora expressaram sua indignação, preocupação e repúdio ao governo retrógrado e militarista de Bolsonaro. O clima deverá esquentar mais ainda com o aguardado lançamento do filme Marighella em Berlim esta semana.

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