15.01.16
por Tania Regina Pinto
Adulterar: falsificar, contrafazer, mudar, alterar, corromper.
Adultério: infidelidade conjugal.
Os verbetes estão no “Dicionário Aurélio” e é interessante perceber o peso variado dos sinônimos do verbo transitivo direto em contraponto à sentença expressa no substantivo masculino.
Ela foi pega em adultério e teve ameaçada a guarda de sua filha.
Ela foi pega em adultério e foi espancada pela sogra.
Ela foi pega em adultério, foi impedida de ver o filho e passou a dormir no chão da igreja.
“Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado.” (João, cap. VIII, versículos 3 a 11)
Três filmes e uma passagem bíblica das mais famosas, que conta a história da mulher adúltera, arrancada do local onde estava com alguém (imagina-se um homem) que não era seu marido, arrastada pelas ruas, jogada no chão sob a ameaça de morrer por apedrejamento.
Na passagem bíblica, Jesus salva a mulher com a frase que até música inspirou – vale lembrar Ataulfo Alves, “Atire a primeira pedra, ai, ai, ai/ aquele que não sofreu por amor...”
Passados mais de dois mil anos - e apesar de a Bíblia estar entre os dez livros mais vendidos da história -, continuamos com pedras nas mãos. A violência contra a mulher é uma marca no século XXI, ainda, e é disso que tratam os filmes “Carol”, de Todd Haynes, e “As Sufragistas”, de Sarah Gavron, ambos de 2015; e a “A Segunda Esposa” (Kuma), do diretor curdo-austríaco Umut Dag, de 2012.
Todos sempre temos a possibilidade de escolha, mesmo quando nos sentimos impotentes e/ou somos tratadas como seres humanos de segunda categoria. E este livre arbítrio não tem fronteiras e se escancara em “Carol”, produção anglo-americana ambientada na Nova York dos anos 50; em “A Segunda Esposa”, que foca na família e na tradição turca, e no drama britânico “As Sufragistas”, vivido no Reino Unido no início do século passado.
Nos três longas, por “adulterarem”, as mulheres são violentamente castigadas de maneiras diversas. Detalhe: não só pelos homens!
Calcanhar de Aquiles
Ao lado do adultério, o viés feminino presente nos três roteiros é a maternidade, a grande vocação e, ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles de toda mulher – tenha ou não filhos. O viés masculino é usar a criança, a família, o teto, como “moedas de troca”.
Quem sou eu? Quem é você? Qual o meu papel na sua vida? Qual o seu papel na minha vida? Qual a medida da nossa bondade, da nossa maldade, da nossa indiferença? Qual o meu querer? Qual o limite da liberdade?
“Carol” e “A Segunda Esposa” propõem estas questões quando falam de amor (ou erros do amor?), de (homo) sexualidade e de como, em nome deste sentimento que classificamos de ‘sublime’, somos capazes de violências inomináveis.
Cate Blanchett, magnífica no papel de Carol Aird – personagem que empresta o nome ao filme - é uma mulher casada, com uma filha pequena, vivendo na preconceituosa Nova York dos anos 50, mas sem se deixar aprisionar. Ela sabe camuflar seus sentimentos – gosta de mulheres - e, com olhares e toques sutis atrai Therese Belivet (Rooney Mara) para o seu mundo. Sem urgência nem ansiedade. Tudo no tempo da delicadeza.
“Carol” narra uma bela história de amor, de força e fragilidade, de escolhas – maternidade e adultério, que se traduz no egoísmo de quem se sente traído. E traz, ainda, a violência de quem tem a lei e os preconceitos, da época, a seu favor; de quem erroneamente entende que amor implica posse e infelicidade do ser amado.
Família e tradição
O mesmo mote é utilizado em “A Segunda Esposa” – a diferença é a fonte da violência: a família e a tradição. E a dor, maior talvez, seja olhar como a doença do ego se manifesta na forte-frágil matrona do filme: amamos quem faz a nossa vontade, que se comporta pela nossa cartilha, e somos capazes de matar quem se permite ir na contramão do que queremos.
A primeira cena do filme é uma festa de casamento em uma aldeia do curdistão, casamento arranjado para que a noiva possa ir viver na Áustria. Os noivos não se conhecem. Mas são ambos jovens, durante a cerimônia. União realizada, a jovem Ayse (Begüm Akkaya) se transforma na segunda esposa do pai de seu marido. Ela terá a responsabilidade de cuidar do marido, dos filhos e dos afazeres domésticos caso a primeira esposa (sua sogra?), doente, morra.
“A Segunda Esposa” é um filme sobre mulheres turcas, que vivem para servir homens turcos. Elas não são felizes. Mas aprendem que não devem reclamar – tudo está sempre bem! É verdade que uma das filhas do casal, nascida na Áustria, critica a hipocrisia das configurações familiares, da boca para fora.
A necessidade de resistência cultural, entretanto, quando se vive em uma terra estranha, impõe-se com mais força. Junto, ainda, vêm à tona todos os preconceitos, bem como a impossibilidade de se alcançar a felicidade. Na verdade, em nome da família, todos dizem “sim” à uma convivência diária que se traduz em violência e falta de solidariedade.
Por fim, em “As Sufragistas”, que conta parte da luta pelo direto ao voto, o adultério, a grande traição é o desejo feminino de cidadania e a desobediência pública ao marido. Neste filme, também, aparece a gravidez como um fator limitador da luta e a maternidade usurpada como castigo. (leia mais no artigo “Sufragistas, a luta por direitos”)
A impossibilidade do “felizes para sempre” para as princesas dos contos de fada - e que pode, sim, acontecer na vida real – é a marca dos três filmes, impossibilidade por egoísmo, desejo de vingança e invisibilidade do ser mulher. Talvez porque a bruxa malvada resista em nós, ainda. E ande de ombros com o homem mau.
Visitarmos demoradamente a violência, o amor, o orgulho, o egoísmo e os preconceitos em nós é o desafio! “Carol”, “A Segunda Esposa”, “As Sufragistas” e a passagem bíblica da mulher adúltera são como um convite a todos que buscam e têm consciência de que o ponto de partida para a paz é a morte da violência individual.
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