BAFICI - FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA INDEPENDENTE DE BUENOS AIRES

08.05.2017
por João Moris

Mostra argentina

O cinema independente argentino, também chamado de Nuevo Cine Argentino, é um movimento estético surgido no início dos anos 90. Ainda que seja em grande parte produzido independentemente, em várias ocasiões esse movimento foi amplamente subsidiado pelo governo argentino. Além do mais, o grande número de escolas de cinema na Argentina, aliado a um bom repertório educacional e cultural da população, levou o cinema argentino a se destacar na América Latina em termos de qualidade das produções. 

A característica principal dos filmes deste movimento é o minimalismo, a sobriedade da narrativa, geralmente austera e realista, pessoal e intimista, e uma preocupação com temáticas sociais, de identidade e gênero. Os precursores do Nuevo Cine Argentino são hoje conhecidos do público cinéfilo latino-americano e mundial, tais como Pablo Trapero, Lucrecia Martel, Adrián Caetano, Bruno Stagnaro, Martin Rejtman, Lisandro Alonso, Sandra Gugliotta, Daniel Burman, Ulises Rosell, Mariano Galperín, Pablo César e Diego Lerman. 

O BAFICI surge em 1999 como uma vitrine importante de visibilidade para este novo cinema independente, inclusive com a exibição de documentários e curtas-metragens de pouca inserção comercial. Com as sucessivas crises econômicas da Argentina, este movimento caiu em decadência a partir do final dos anos 2000 devido à falta de aporte financeiro, dando lugar a jovens cineastas que optaram por produzir seus filmes por conta própria, em novas plataformas digitais, por meio de cooperativas ou produtoras independentes. 

Cabe ressaltar o papel do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), órgão estatal criado em 1968 e grande fomentador do cinema argentino moderno. Além de subsidiar muitos filmes, patrocinar festivais e lançamentos, a entidade atua também como distribuidora, garantindo diferentes canais de difusão dos filmes no país, a universalização do acesso ao cinema e a formação de espectadores críticos. Mas, como não poderia deixar de ser, desde 2016 a entidade, sob o governo neoliberal e conservador de Mauricio Macri, vem sofrendo sucessivos cortes de verbas, gerando descontentamento em toda a indústria cinematográfica argentina. Na abertura do BAFICI 2017, houve vários discursos e protestos por parte dos cineastas e público presentes ao evento contra as políticas de corte do governo Macri.

Manifestantes protestam na abertura do BAFICI em 19/04/17 contra a política de corte de verbas do INCAA

Este ano, o BAFICI exibiu aproximadamente 90 filmes argentinos, entre coproduções com outros países, longas, médias e curtas metragens, muitos em estreia mundial ou nacional. Vários dos diretores da mostra argentina são nascidos nas décadas de 80 e 90. 

Entre as fitas e coproduções argentinas que assisti, as que mais se destacaram foram:
Todo Sobre el Asado (dir. Gaston Duprat e Mariano Cohn – Argentina) - Um divertidíssimo documentário sobre o mais emblemático símbolo da cultura argentina: o churrasco. Além de ter uma sequência didática dos vários tipos de cortes de carne e diferentes preparos do churrasco existentes no país, o filme faz uma ácida crítica ao sacrossanto hábito dos argentinos de comer asado e como isto influencia sua atitude e visão de mundo. O filme é narrado de maneira sarcástica, com o próprio narrador fazendo uma autocrítica e soltando várias piadas machistas.


El Pampero (dir. Matías Lucchesi – Argentina/Uruguai) - Um filme íntimo e minimalista passado num veleiro no Rio da Prata, envolvendo um homem com uma doença terminal, uma mulher que testemunhou um crime e um policial solitário. Com uma sólida construção de personagens e narrativa envolvente, o filme cativa e se revela aos poucos. Ótimo representante do cinema independente argentino.


Cínicos (dir. Raúl Perrone – Argentina) - O veterano Raúl Perrone, praticamente desconhecido no Brasil, é um dos diretores autorais mais cultuados da Argentina. Seus filmes não fazem concessão ao cinema comercial e propõem uma reflexão profunda. Em Cínicos, todo filmado em preto e branco com uma fotografia deslumbrante, Perrone faz uma analogia ao estado do mundo atual ao resgatar a ideologia dos filósofos cínicos da Grécia Antiga, que viviam como mendigos, consideravam que a civilização era um mal e, por isto, desprezavam as riquezas e repudiavam as ciências, as normas e as convenções.


La Vendedora de Fósforos (dir. Alejo Moguillansky – Argentina) - Uma fábula moderna e triste, entre o documental e o ficcional, inspirada no conto de Andersen “A Pequena Vendedora de Fósforos”. Conta a história da relação entre um casal argentino, marido e mulher músicos da orquestra do Teatro Colón, que está em greve, e as dificuldades deste casal para sobreviver e criar sua filha pequena. Uma metáfora sobre a situação atual da Argentina. Com uma edição ágil, uma bela trilha sonora e uma homenagem ao cineasta francês Robert Bresson, este filme ganhou o prêmio BAFICI deste ano de melhor película da competição argentina.


Chaco (dir. Juan Fernandez Gebauer, Ignacio Ragone e Ulises de la Orden – Argentina) -  Instigante documentário sobre os povos indígenas da região do Chaco argentino e falado na língua qom. Em tom de denúncia, o filme relata a colonização da região pelo homem branco e entrevista os anciãos e líderes locais, que contam dos massacres da população indígena pela polícia argentina ao longo do século XX, sendo o último em 2010 quando os indígenas protestavam contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado.


Una Hermana (dir. Sofia Brockenshire e Verena Kuri – Argentina) - Um exemplar típico do cinema independente argentino, com poucas falas, closes e movimentos de câmera sutis, o filme conta a história de uma jovem que busca a irmã desaparecida após encontrarem seu carro carbonizado sem o corpo, à beira da estrada, numa cidadezinha ferroviária argentina. A busca solitária e obsessiva da jovem expõe as tensões de classe na Argentina, o descaso das autoridades, o desamparo institucional, a omissão, o silêncio e a indiferença dos moradores da região.


Vergel (dir. Kris Niklison – Argentina/Brasil) – Uma coprodução argentino-brasileira dirigida por uma diretora argentina oriunda do teatro. O filme conta a história de uma mulher brasileira em férias na Argentina com o marido, que morre num acidente, e mostra a burocracia para que as autoridades argentinas liberem o corpo do marido. Enquanto aguarda a liberação, a mulher faz amizade com a vizinha do andar de baixo do apartamento onde está hospedada. Em que pese a atuação corajosa da atriz Camila Morgado, o filme é todo passado dentro do apartamento e não consegue se distanciar do tom teatral. 


Cícero Impune (dir. José Celestino Campusano – Argentina/Brasil) – Outra coprodução argentino-brasileira também dirigida por um diretor argentino. O filme é todo rodado em Rio Branco, no Acre, e conta a história de um autoproclamado médium e profeta local que droga e estupra as mulheres que o procuram para aconselhamento. O filme tem o estranhamento típico do cinema independente, mas na tentativa de mostrar a impunidade no Brasil, o diretor errou a mão na condução do filme e na direção de atores.


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