15.01.2018
Por João Moris
Filas, aglomerações, frisson. Uma expectativa quase juvenil toma conta do público cubano para ver os filmes do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano. Realizado há 39 anos em Havana no mês de dezembro, este festival de cinema absolutamente único adquire uma aura mítica na cidade, em grande parte pela natureza das plateias cubanas. Para um cinéfilo como eu, que adora viajar e conhecer outras culturas, foi uma oportunidade rara de participar de um festival internacional com sabor verdadeiramente local.
Salas nostalgia
Não poderia começar a descrever o Festival de Havana sem mencionar as suas curiosas salas de cinema. Como quase tudo em Havana, os cinemas sede do Festival são antigos e têm um ar nostálgico. Espalhados ao longo da Calle 23, no elegante bairro Vedado, esses cinemas de rua com telas gigantes remontam às grandes salas de São Paulo dos anos 50 e 60.
O Cine Yara, inaugurado em 1947, é um verdadeiro ícone cubano com seus 1.650 lugares, pé direito altíssimo e arquitetura modernista. O Cine La Rampa é todo em estilo art déco, com uma longa e charmosa rampa de acesso ao auditório. Os cines Riviera, Charles Chaplin, Acapulco e L Y 23 também datam da década de 50. Esses cinemas foram nacionalizados após 1959 e, além de receberem incentivos para permanecer abertos, foram restaurados ou modernizados.
Embora nem sempre o som e a projeção sejam impecáveis, todos os cinemas são equipados com tecnologia de exibição digital. Em comparação à mesmice das salas multiplex dos shoppings, onipresentes nas grandes cidades do mundo, assistir a filmes em cinemas como os de Havana foi uma experiência multissensorial para mim.
O icônico Cine Yara no bairro Vedado, Havana
Seja pela falta de contato com o cinema de outras partes do mundo, seja pelo fato de o cinema ser uma paixão nacional em Cuba (além do sorvete!), as plateias cubanas são imbatíveis e comparecem em massa às sessões do Festival de Havana, mesmo com o precário sistema de transporte público da cidade.
Segundo dados oficiais, o Festival atrai aproximadamente 300 mil espectadores todos os anos. É um público nada desprezível para uma cidade de 2.4 milhões de habitantes! A título de comparação, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tem, em média, a mesma quantidade de público para uma cidade de 12 milhões de habitantes.
Em 2017, o Festival de Havana selecionou 404 filmes, entre longas, médias e curtas metragens de ficção, documentários, animações, clássicos e retrospectivas, vindos principalmente de países da América Latina (ver meu artigo sobre os filmes latino-americanos de 2017 em http://www.grupocinemaparadiso.com.br/2018/01/filmes-latino-americanos-em-2017.html). O pacote de 7 ingressos a R$ 1,25, que é compatível com o poder aquisitivo do consumidor em Cuba, ajuda a atrair todo o espectro da sociedade cubana aos cinemas, ou seja, pessoas muito simples, trabalhadores, velhos revolucionários, intelectuais, estudantes de todas as idades e até camponeses!
Há uma certa comoção nas salas, principalmente para ver filmes cubanos ou os filmes latinos mais badalados. Nessas sessões, como numa matinê passando um filme blockbuster, o envolvimento dos espectadores com o que acontece na tela é total e não é incomum ouvir conversas, gritinhos, torcidas, risos nervosos e muitas gargalhadas, conforme a cena do filme. Muitos cinemas lotam, mesmo nas sessões matinais e vespertinas durante a semana, e as filas às vezes dobram o quarteirão. Se a sala está com a lotação esgotada, é comum as pessoas esperarem a próxima sessão, ainda que não seja para ver o filme inicialmente planejado. E dá-lhe fila!
Dobrando o quarteirão: fila em frente ao Cine La Rampa
Conversei com o organizador e curador do Festival de Havana, Alberto Ramos, que me explicou que a adesão do público cubano ao cinema se deve em parte às políticas culturais do governo após a Revolução de 1959, fomentadas através do Instituto Cubano de Arte y Industria Cinematograficos (ICAIC), que até hoje produz e distribui filmes cubanos, além de promover o Festival. “Com a descolonização das telas a partir de 1959, o cinema teve um papel importante na educação e na formação de um público que passou a ter acesso a todos os tipos de filmes, e não apenas aos americanos, nas décadas de 60 e 70 e até 80. Todos os grandes filmes e diretores daquela época passavam por Havana e houve uma expansão da cinefilia no país”, disse Alberto.
Películas cubanas
Com efeito, a cultura cinematográfica em Cuba se intensificou após a Revolução. Entre 1959 e 1990, muitos filmes importantes foram produzidos, tendo os cineastas Tomás Gutierrez Alea (1928-1996) e Humberto Solás (1941-2008) como seus expoentes máximos.
No entanto, após a década de 90, com o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, a derrocada da União Soviética e a escassez de recursos, Cuba passou a produzir menos filmes. Atualmente, são produzidos no máximo cinco longas de ficção ao ano no país. A participação do ICAIC hoje é limitada e os filmes são invariavelmente financiados por via independente, por financiamento coletivo ou por meio de coproduções. Paradoxalmente, Cuba tem duas das melhores escolas de audiovisual do mundo: a Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV), que reúne estudantes de todo o planeta e é uma referência na América Latina, e o Instituto Superior de Artes (ISA). Como diz Alberto Ramos: “Em Cuba há muitas escolas de cinema e cineastas, mas se faz pouco cinema”.
Por este motivo, os dois longas metragens cubanos exibidos no Festival de Havana deste ano eram aguardados com muita ansiedade pelo público: Los Buenos Demonios, de Gerardo Chijona, e Sergio y Serguéi, de Ernesto Daranas. Ambos os diretores são veteranos, com uma extensa filmografia. Como sempre, muitas filas nas sessões destes filmes e houve até tumulto na porta para entrar. Sessões extras tiveram de ser programadas e estimo que, durante o Festival, aproximadamente 8.000 pessoas assistiram a cada filme. É um público maior do que recebe a maioria dos 150 filmes brasileiros lançados no Brasil durante o ano!.
Cena do filme cubano Sergio y Serguéi
Apesar do enredo original, com críticas ao comunismo e à sociedade de consumo, ambos os filmes têm roteiros que fazem muitas concessões ao riso fácil e ao humor rasteiro, esvaziando o conteúdo crítico. É certo que esses filmes têm grande potencial de comunicação com as plateias, mas senti que em Cuba, como talvez no resto do mundo, há um achatamento da cultura onde tudo precisa ser explicado e mastigado, sob o risco de o diretor “perder o público”
Algo que me chamou a atenção no Festival de Havana é que os organizadores programaram apenas uma sessão do clássico cubano Lucía (1968), de Humberto Solás, cuja cópia foi restaurada. Imaginei que a sala fosse estar cheia e fiquei surpreso ao ver que só havia umas 100 pessoas no cinema. Lucía conta a trajetória de três mulheres de classes sociais diferentes em épocas distintas da história de Cuba (1893, 1930 e 1968). É um filme em preto e branco, sofisticado, com uma linguagem arrojada para a época em que foi feito.
Perguntei a Alberto porque programaram um filme importante como Lucía em uma única sessão e porque havia tão pouco público. “A época em que o filme foi produzido era outra e o público era outro. Talvez para muitos cubanos, que não viveram aquela época, o filme não faça mais sentido. Os jovens hoje se comunicam de forma diferente, têm outros valores, outro olhar para a vida. Talvez o filme hoje causasse um misto de estranheza e admiração. É uma incógnita”, respondeu o curador. De qualquer forma, a organização do Festival não quis pagar para ver qual seria a reação do grande público ao filme e não programaram Lucía em outros cinemas e dias.
Nesse sentido, o entusiasmo das plateias cubanas com os filmes do Festival de Havana me pareceu ser mais de natureza instintiva do que reflexiva. Em todas as sessões que estive, o público sempre aplaudia os filmes após o término, mesmo quando se tratava de um filme mais “difícil” e complexo. Estes aplausos eram espontâneos ou apenas reverenciosos? A pergunta que ficou para mim é: como os filmes mais experimentais ou eruditos chegam a essas plateias e qual o seu nível de compreensão?
Censura?
Um entrave ainda presente na produção audiovisual em Cuba é a questão da censura. Hoje parece haver um abrandamento no veto a filmes e documentários realizados no país, mas os vetos existem. Há muito, cineastas cubanos reivindicam do governo de Raúl Castro o reconhecimento dos criadores de audiovisuais, a legalização de pequenas produtoras (até hoje toleradas) e uma lei do Cinema, bem como a reformulação do papel do ICAIC.
Em 2014, o filme do cineasta francês Laurent Cantet, Retorno à Ítaca, foi proibido de ser exibido no 36º Festival de Havana. O filme conta a história de seis cubanos reunidos na cobertura de um prédio de Havana que falam de sua desilusão e esperança em relação ao futuro de Cuba. O filme foi liberado para exibição nos cinemas do país seis meses depois da proibição.
Em 2015, a história de Santa y Andres, que ambientado na década de 80 e se centra na vida de um poeta cubano marginalizado por ser homossexual e, portanto, “contrarrevolucionário”, ganhou o prêmio de melhor roteiro no 37º Festival de Havana. Um ano depois, o filme havia sido rodado como produção independente do diretor cubano Carlos Lechuga e com financiamento do programa Ibermedia. Estava pronto para ser exibido no 38º Festival de 2016, quando houve um veto do ICAIC, alegando “questão de princípios”. Além de protestos, esta proibição paradoxal causou mal estar entre os cineastas de Cuba e repercutiu mundialmente.
O curador Alberto Ramos garante que o Festival tem autonomia em relação ao ICAIC para selecionar os filmes que bem entender e diz que o Instituto confia nos organizadores, “mas se decidem proibir um filme escalado para o Festival, não há nada que possamos fazer, porque esse tipo de decisão não é da nossa alçada”, afirma. Para ele, “proibir um filme cubano traz visibilidade e importância ao filme, uma aura de heroísmo, de independência. O filme Santa y Andres fez sucesso porque correu o mundo como um filme cubano censurado pelas autoridades do país”.
Cartaz do filme Santa y Andres, que foi censurado no Festival de Havana de 2016
Alberto afirma que a marca registrada do Festival de Havana é trazer filmes latinos de qualidade. “Nosso evento exibe filmes importantes que não se veem em telas cubanas no restante do ano e talvez nem em outras telas de cinema do mundo. Como o Festival é uma vitrine da América Latina, o critério qualidade para nós é básico, levando em consideração os diferentes tipos de público que frequentam o festival e que buscam identificação. Por exemplo, a população cubana está envelhecendo e procuramos trazer filmes que contemplem o público idoso; há muitos estudantes de cinema e áreas afins que se interessam por filmes experimentais e de vanguarda; há filmes que resgatam a memória histórica e as lutas sociais da América Latina, que também têm a ver com a questão da identidade e que para muitos cubanos é algo importante”, afirmou o curador.
Isto me leva a outro questionamento sobre o que é arte hoje e o seu papel. No caso específico do cinema e da produção audiovisual, em um mundo em que a imagem em movimento é onipresente no dia a dia das pessoas, a fronteira entre a cultura erudita e a cultura popular está cada vez mais difusa. Para quem os diretores estão fazendo filmes? Quem os assiste? Como estão se comunicando com o seu público? Quem vai ao cinema assisti-los? A formação de um repertório cinematográfico entre o público jovem é realmente importante? Qual o apelo de um filme latino-americano entre os jovens latino-americanos? Qual o critério de qualidade nesse caso? Todas estas questões me vieram à cabeça ao assistir aos filmes de um festival de cinema tão singular como o de Havana junto a uma plateia tão eclética e entusiasmada como a cubana.
Link relacionado:
Filmes latino-americanos em 2017
Vídeos relacionados:
Vinheta do 39º Festival de Havana
https://www.youtube.com/watch?v=AJ3--VOzk-k&list=PLh3-qDkDL2oguncW0RM4eGyWKcVdQMcFL
Exibição do filme cubano Sergio y Serguéi nos vários cinemas do 39º Festival de Havana
https://www.youtube.com/watch?v=x7gF-0u9Y7o
1 comentários:
Riquíssimo texto, João. Suas palavras conseguiram me transportar para Havana e me instigaram a participar do festival, ainda que eu não seja dos mais ávidos cinéfilos como você. Parabéns pelo trabalho! A propósito, não deixe de participar do Fantaspoa este ano. Grande abraço.
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