12.11.2019
Por Rianete Lopes Botelho
Todd Phillips, diretor do filme Coringa, fez um excelente trabalho. Escolher um personagem de história em quadrinhos para fazer um filme para adultos é um desafio, porque há uma associação entre essa temática e o mundo infanto-juvenil. E essa escolha tem ainda um diferencial: o personagem não é um super-herói, mas sim um vilão (Joaquim Phoenix, excelente!), representativo da maldade que pode destruir o mundo. É um anti-herói que nas histórias convencionais nunca é o protagonista, sempre é o derrotado na luta entre o bem e o mal. Nos contos infantis no mundo inteiro, existem as figuras míticas representativas desses dois polos (fada e bruxa, ogros, rainhas más e doces princesas etc.) assim como a valorização da bondade e do amor como sentimentos que têm o dom de desfazer maldições e de transformar feras em príncipes. Existe muito adulto que acredita que seu amor poderá transformar alguém mau-caráter em uma pessoa correta, íntegra, altruísta, justa e amorosa, mesmo à sua revelia! As crianças, ainda não sabendo lidar com a coexistência de afetos positivos e negativos dentro de si, temem não serem suficientemente boas para merecerem o amor dos pais. Como nas histórias infantis o bem sempre vence, é comum que a criança não se canse de ouvi-las para apaziguar seus medos. Paralelamente, esse papel controlador é exercido pelo processo civilizatório encarregado de reprimir nossos impulsos anti-sociais.
O vilão do filme - como todo vilão - está em desacordo com a ordem vigente, com o agravante de que é pobre, feio, solitário e sem nenhum acolhimento afetivo. Além disso, é um doente mental (mais inadequado ainda) parecendo o protótipo da sandice do mundo.
A cidade onde se desenrola a história é apresentada como sombria, ameaçadora, suja, cheia de ratos e lixo acumulado. Acho que é uma metáfora sobre nossa capacidade destrutiva, socialmente reprimida, mas passível de romper o controle em situação de grave crise ou excesso de tensão. Aí a "sujeira" pode invadir tudo e danificar a qualidade de vida. Na história da humanidade, em todos os tempos e lugares, sempre houve manifestações destrutivas entre indivíduos, grupos e países, assim como sempre existiram leis e normas de conduta para facilitar as condições de convivência humana. Por ir de encontro à manifestação de nossos impulsos mais primitivos, esta é uma tarefa difícil de ser bem executada. Guerras, conflitos políticos e religiosos, intolerância em lidar com o diferente tem sido canais de expressão dessa força instintiva. A cruel desigualdade social e econômica, é uma das nossas "sujeiras" mais insalubres que corroem nossa convivência social.
No filme, o personagem inadequado e a cidade deteriorada são uma mesma manifestação de abandono e decadência. Aproveitando-se do descontentamento popular surge a figura do político populista, prometendo ordem e resolução de todos os problemas da cidade. Esta é uma situação conhecida de todos nós, na vida real.
Outro aspecto mostrado é a busca desesperada de Arthur, o personagem, pelo reconhecimento social, pela busca de sucesso, como se só dessa maneira pudesse ter uma identidade e se reconhecer como indivíduo. Dá para perceber a referência ao anseio contemporâneo de sucesso midiático rápido, nem que seja de forma negativa. O importante é ficar conhecido pelo maior número possível de seguidores virtuais, sem preocupação com a qualidade do que está sendo difundido. Arthur quer ser um comediante bem sucedido, na esperança de que, ao provocar o riso estabeleceria uma ponte com os demais e se sentiria mais integrado à humanidade. Mas ele é um ser melancólico, amargurado. Tem crises incontroláveis de riso, mesmo em situações inadequadas, provocando incômodo entre as pessoas em volta. Aliás, essas crises mais parecem de choro convulsivo do que de riso. Seu rosto em vez de alegria, denota angústia e sofrimento. Em meio a tudo isso, o personagem tem bastante lucidez em várias situações, quando, por exemplo, diz que sua vida vale menos que sua morte e também que nunca desfrutou de um só momento de felicidade em toda a sua existência.
O filme deixa claro que, apesar da apregoada liberdade a que todos têm direito, na verdade nem todos têm a opção de fazer escolhas, não porque essa opção lhes seja negada por proibições legais, mas por absoluta inexistência de oportunidades. Esse vilão não é mostrado simplesmente como um ser do mal, convencido de seus poderes maléficos, mas como um homem com uma história de desamparo e sofrimento, mas que tem consciência de suas dificuldades, tanto que procura ajuda no serviço público de saúde. Mas, como na vida real, os parcos recursos destinados a esse atendimento sofrem cortes e ele é extinto. Fica patente que a somatória de frustrações na vida de Arthur é muito maior do que a de realizações positivas, confirmando cada vez mais para ele que não vale a pena tentar se adequar ao convívio social, por ser um esforço inútil. Lembrei-me, agora, do mito de Sísifo, condenado a empurrar uma grande pedra morro acima e, ao final do esforço, a pedra rola morro abaixo e ele recomeça tudo outra vez. Arthur entrega os pontos quando (como a gota d´água) durante uma de suas crises de riso no metrô, ele fica exposto aos ataques de três homens agressivos. E ele, que até então se submetia a humilhação e agressões físicas sem reagir, deixou-se tomar pelo ódio reprimido, dando vazão a uma violência que o fez experimentar a sensação de grande poder. A partir daí, o personagem sente que pode tomar decisões a seu favor, constatando a força de seu potencial agressivo como promotor de sua própria importância e do reconhecimento popular tão desejado. Passou a se ver com direito de vida e morte sobre quem cruzasse seu caminho. Este parece ter sido o momento do nascimento do Coringa, cuja identidade tinha sido forjada ao longo da existência inútil e inexpressiva de Arthur.
Não estou justificando nenhum comportamento criminoso, nem tampouco afirmando que ele é resultado apenas de condições ambientais adversas, mas admitindo que estas podem favorecer a expressão de tendências psicopatológicas pré-existentes no sujeito.
Ao comentar a explosão dos impulsos agressivos do personagem, me veio à mente as explosões populares ocorridas nos últimos tempos em várias partes do mundo, a meu ver provocadas pelo acúmulo de frustrações reprimidas referentes aos direitos de cidadania. Tanto é que parece absurdo se supor um protesto contra um simples aumento de passagem de transporte público tenha o poder de levar multidões às ruas e fazer irromper tanta violência. É claro que essa força vem de muitas camadas de insatisfação acumulada por direitos não atendidos.
Gostei muito do filme por suas qualidades técnicas, roteiro, direção, interpretação e por sua ambiguidade transitando, às vezes, entre fantasia e realidade. Mas, gostei, principalmente, da construção humanizada do vilão, apresentado não como um monstro extraterrestre ou demoníaco, porém como um homem que, em meio a tantas agruras, constrói a sua única identidade possível.
Artigo de Raquel Foresti:
http://www.grupocinemaparadiso.com.br/2019/10/joker-com-spoilers.html
Artigo de Fernando Machado:
http://www.grupocinemaparadiso.com.br/2019/10/o-filme-coringa-e-o-movimento-occupy.html
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